domingo, 5 de maio de 2019

OS HOMENS-MEMÓRIA FAZENDO DIFERENÇA NA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

(Texto originalmente apresentado a uma turma de 7º ano, do Instituto Educacional Zion, em Itaguaí (RJ), no ano de 2018). 

Uma reflexão quanto aos homens memórias implica pensar a definição das palavras. A palavra “Homem” vem dimensionada no Webster’s Dictionary 1828 como: (s.m.) 1. humanidade; a raça humana; toda a espécie de seres humanos; seres distinguidos de todos os outros animais pelos poderes da razão e da fala, bem como pela sua forma e aspecto digno; 2. Um indivíduo do sexo masculino da raça humana; 3. Um macho da raça humana; usado frequentemente em palavras compostas, ou na natureza de um adjetivo; como um homem-criança; homens cozinheiros; homens-servos”.

Cabe ressaltar que a definição nº 3 parece aquela que melhor se adapta ao conceito de homem abordado neste texto. A palavra “Homem” vem composta de outra que mais que lhe conferir uma ‘qualidade’ pode expressar sua ‘identidade social’, seu vínculo com o grupo.

Por sua vez, o substantivo feminino ‘Memória’da raiz grega ‘mente’ significa “a faculdade da mente pela qual ela retém o conhecimento de eventos passados, ou de ideias passadas” (WEBSTER 1828 BRASIL). No caso, o termo ‘retém’ é mais que guardar para si mesmo; pode ser entendido como conservar para compartilhar. A memória, primeiro até pode ser individual, mas se ela não for socializada, morre como uma vaga lembrança. Eis o que escreveu Jacques Le Goff (1990, p. 477): “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.

Assim sendo, vale a pena raciocinar sobre os homens-memória. Esses homens eram um patrimônio cultural das sociedades da oralidade: Nestas sociedades sem escrita há especialistas da memória, homens-memória: “genealogistas”, guardiões dos códices reais, historiadores da corte, “tradicionalistas”, dos quais Balandier [...] diz que são “a memória da sociedade” e que são simultaneamente os depositários da história “objetiva” e da história “ideológica”, para retomar o vocabulário de Nadel (LE GOFF, 1990, p. 429).

Os homens memórias eram ‘responsáveis’ por compartilhar com as novas gerações os tesouros culturais do passado. Preservando assim a vida em sua dimensão social, cultural, espiritual e até mesmo fisiológica. Na maioria das vezes os homens memórias eram idosos que, pela longa estrada de vida, eram detentores dos conhecimentos referentes ao grupo do qual fazia parte. Leroi-Gourhan (LE GOFF, 1990, p. 429), dentre outros, reconhece os idosos como personagens “na humanidade tradicional, o importantíssimo papel de manter a coesão do grupo”.

Na Bíblia a velhice aparece representada de maneira poética na metáfora dos cabelos brancos (Prov. 16.31; Sal. 71.18; Is. 46.4; Dn 7.9; Jó 15.10). O respeito foi requerido por Moisés aos homens memória quando escreveu: “Fiquem de pé na presença das pessoas idosas e as tratem com todo o respeito” (Lv 19.32 apud ULTIMATO, 1999). O ‘sofrido’ Jó (8.8) dá uma dica: “Indaga às gerações passadas, e considera o aprendizado que seus pais acumularam”. A todo o momento, na Bíblia, é estimulada a valorização dos homens-memória por meio da interação respeitosa, educativa e dialógica.

Em A República, Platão escreve uma experiência entre Sócrates e Céfalo, pai de Polemarco. Ao visitar aquele idoso Sócrates ouviu dele o pedido de aparecer mais vezes já que não podia mais se locomover com facilidade e circular pela cidade: “Ó Sócrates, tu vens muito raramente ao Pireu para nos visitar. Mas devias fazê-lo mais vezes, (...). Fica sabendo bem: à medida que vão murchando para mim os prazeres físicos, nessa mesma aumentam o desejo e o prazer da conversa” (PLATÃO, 2005, p. 08). Naturalmente essas conversas figuram reminiscências de fatos passados.

Então, Sócrates destaca a riqueza dessa conversa: “Certamente, ó Céfalo – disse eu –, pois é para mim um prazer conversar com pessoas mais velhas. Efetivamente, parece-me que devemos informar-nos junto delas, como de pessoas que foram à nossa frente num caminho que talvez tenhamos de percorrer, sobre as suas características, se é áspero e difícil, ou fácil e transitável” (PLATÃO, 2005, p. 08). A partir daí iniciam um fecundo bate-papo sobre a vida e a velhice...


Os homens-memória estão relacionados ao patrimônio cultural por serem detentores de significados culturais que outras formas de ‘transmissão’ como a escrita, a Imprensa, a mídia eletrônica e a internet não foram nem são capazes de fazê-lo. A existência dos homens-memória se justifica pela interação social: são adiantados em idade, mas estão vivos; se estão vivos necessitam, podem e têm direito a se relacionar com o outro. Sem os relacionamentos interpessoais não há compartilhamento e apropriação do patrimônio cultural. Daí que a aprendizagem de competências e princípios como o respeito, o diálogo, o caráter e tantos outros podem fazer a diferença nessa ‘modalidade’ de Educação Patrimonial.


REFERÊNCIAS:
BÍBLION. Velhice na Bíblia. Disponível em: <https://www.bibliaon.com/velhice/>. Acesso em: 24 de outubro de 2018.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: _______. História e memória. Trad. Bernardo Leitão... [et al.]. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 423-483.
PLATÃO. Sócrates. In: ________. A República. Trad. Heloisa da Graça Burati. São Paulo (SP): Rideel, 2005, p. 07-36.
ULTIMATO. A Bíblia e o idoso. Revista Ultimato, Viçosa (MG), Ed. 259, Julho-Agosto, 1999. Disponível em: <https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/259/a-biblia-e-o-idoso>. Acesso em: 24 de outubro de 2018.
WEBSTER 1828 BRASIL. Disponível em: <http://www.dicionario1828.com/>. Acesso em: 24 de outubro de 2018.
WEBSTER’s DICTIONARY 1828. Disponível em: <http://webstersdictionary1828.com/>. Acesso em: 24 de outubro de 2018.

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